Legislação

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo XIX, reza que toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão. A realidade é que pouquíssimas pessoas tem essa liberdade e posso assegurar que em nosso meio, jornalista nenhum tem essa liberdade. Não nos meios tradicionais.
Alguém disse que jornalista é o escritor que abandonou a ficção. Gabriel Garcia Marquez disse que a reportagem é o mais difícil e mais completo dos gêneros literários. A Apijor tem reiterado que jornalista é autor em qualquer circunstância de seu ofício, portanto protegido pelo arcabouço jurídico legal do estado e os acordos internacionais subscritos.

Esse entendimento de que jornalista é autor tem encontrado certa resistência por parte de setores proprietários de meios de comunicação de massa.

Historicamente no Brasil, o meio de comunicação tem sido apropriados e manipulados por oligarquias relacionadas com a economia agro-exportadora e/ou por políticos de poder local e regional. Uma comunicação de elite para as elites ou das elites sobre as massas populares numa relação vertical de alienação/dominação e manutenção do status quo. Essa é a nossa história.

Não obstante a permanência de feudos políticos e oligárquicos na propriedade dos meios está havendo, na atualidade, uma mudança de donos. Observam-se duas vertentes nessa escalada de apropriação dos meios.

Uma das vertentes se caracteriza pelo avanço de organizações religiosas no controle da mídia, com ênfase nas rádios de abrangência local e regional sem descuidar da televisão. Na atualidade há um domínio quase que total das emissoras de rádio, incluindo-se rádios comunitárias e até clandestinas. Com relação às redes de televisão abertas já constituem a terceira força e tem presença significativa nas transmissões por cabos e satélites.

Vale lembrar o ocorrido em maio de 2000, quando uma igreja evangélica, tendo adquirido as salas de espetáculo do Politeama, em Salvador, demoliu dois painéis não sem antes danificar a obra com inscrições que revelavam intolerância religiosa. Além do desrespeito ao consagrado artista baiano Juarez Paraíso; viola os direitos autorais, notadamente o direito moral que assegura a integridade da obra. Além disso, nenhum respeito à diversidade, pois a obra destruída representava o nascimento de oxumaré, mais que uma deidade, um símbolo religioso e cultural da nação.

O discurso religioso, além do caráter estelionatário – de per se um crime -, prega o ódio ao diferente, é adverso às tradições culturais de nosso povo, fazem rádio de péssima qualidade, burlam da nossa legislação e de direitos humanos fundamentais. Recordemos que desde a proclamação da República todas as constituições brasileiras reiteraram a laicidade do Estado. A liberdade de culto não pode ser entendida como permissão de hegemonias ou de fundamentalismos

Outra vertente, talvez mais perigosa, é dada pela apropriação dos meios por megacorporações transnacionais. Neste caso é onde se verifica as maiores pressões por desregulamentação total das atividades econômicas e laborais. Onde informação é entendida como commodities; onde empresa de comunicação troca o objetivo de prestar um serviço público essencial pelo objetivo de lucro.

Em ambos os casos de apropriação dos meios, seja por religiosos ou por transnacionais, a prioridade é capitalização, é retorno rápido do capital investido e, aqui está o maior perigo, o uso dos meios para seus fins estratégicos. Os políticos e oligarcas já faziam isso, só que agora, esses objetivos estratégicos constituem ameaça a soberania nacional porque atentam contra o patrimônio cultural da nação.

Estamos diante da mais perversa das características da atual conjuntura econômica, sob a égide do capitalismo globalizado: a excessiva concentração da riqueza e poder em número cada vez menor de mãos. As megacorporações industriais e financeiras estão avançando sobre a comunicação entendida como sistema, máquina complexa e vital na construção e manutenção do poder.

Por razões de espaço abordarei sem pormenores alguns exemplos que me parecem paradigmáticos. Uma abordagem mais ampla está sendo objeto de meu próximo livro, dedicado inteiramente aos efeitos da globalização no sistema comunicacional. Anuncio porque precisarei do apoio de todos para divulgá-lo. O problema é muito grave.
Vejamos o que poderíamos chamar triângulo do poder midiático, em cujos vértices estão Itália, França e Alemanha.

Na Itália, um dos cidadãos mais ricos do planeta, o senhor Silvio Berlusconi, controla, através da Finivest, quase todos os meios de comunicação do país, com tentáculos abraçando vários países. Dono entre outras coisas do Milan domina o mercado de livros (Mondatori), jornais, rádio e televisão. Praticando o que Umberto Eco denomina “populismo midiático” Berlusconi exerce hoje pela quarta vez o mandato de primeiro ministro. Suas ligações com o crime organizado, sua ideologia e de seus apoiadores levou o intelectual italiano a qualificá-lo de restaurador do fascismo. Os demais meios de comunicação, os que não pertencem a Berlusconi são de propriedade de outros grandes grupos industriais, notadamente as automotivas.

Na França, outro da lista dos mais ricos, o senhor Jean Luc Lagardèr, controlador de complexo industrial, em primeiro lugar no ramo aeroespacial militar na Europa, segundo no mundo depois da Boeing, inclui a fabricação de armamento e do Airbus. Controla a Vivendi/Universal e o grupo Hachette, conformando maior grupo editorial e de mídia da França e da Europa.

O terceiro vértice do triângulo, a Alemanha, o Grupo Bertelsmann, além de complexos industriais, controla o maior conglomerado editorial da Alemanha e quiçá do mundo depois que se apoderou da Randon House, o maior grupo editorial em língua inglesa. A Bertelsmann controla o Grupo RTL a maior rede de broadcasting da Europa, com 43 emissoras de televisão e 32 de rádios. Com base em Luxemburgo tem emissoras na Alemanha, França, Bélgica, Países Baixos, Reino Unido, Austrália, Espanha, Hungria, Croácia, além de produtoras de cine e vídeo nos Estados Unidos. As raízes desse grupo foram fincadas no tempo em que era o único produtor de conteúdo de Hitler.

Pois bem, esse triângulo constitui um único conglomerado empresarial, o maior grupo de edição, impressão e distribuição de livros, jornais e revistas, canais de televisão aberta e por cabo, empresas de telefonia fixa e móvel, provedores de internet, transmissões por satélite, enfim, tudo o que se pode enquadrar como comunicação e informação e estão estendendo seus tentáculos sobre todo o planeta.

No Brasil pode-se tomar como exemplo o Grupo Abril. Interessante que depois de uma crise que o colocou a beira da quebra esse grupo comprou nada menos que a Ática/Scipioni que durante décadas liderou o mercado de livro escolar no Brasil. Eles já eram donos da Dimap, a distribuidora que detinha 70% do mercado, ficaram com quase 100% após adquirir, em 2007, a segunda colocada, a Distribuidora Fernando Chinaglia. Do duopólio para o monopólio sem nenhum impedimento. A Abril é hoje o maior conglomerado de edição, impressão e distribuição de livros e revistas do continente, além de controlar sistema de televisão a cabo e por satélite.

Não se pode falar da Abril sem falar do Grupo Folha. Isso porque a Portugal Telecom entrou com muito dinheiro tanto na Abril (21%) como na Folha (já deve ser 30%). Hoje todas as empresas do grupo, que conforma o segundo conglomerado de mídia no país, estão reunidas na holding Folha-UOL. Já a gráfica Plural, que aparece como sendo da Folha, tem como sócia a estadunidense Quad Graphics.

Paralelamente vê-se intensa movimentação das telefônicas – fixas e móveis – em parceria com grupos industriais e financeiros em direção às mídias de conteúdo, seja televisão, rádio, música, informação, seja produção de cine/vídeo e as novas mídias digitais.

E temos também o grupo Globo, domina o mercado de televisão aberta e por cabo, controla empresas de edição, impressão e distribuição de livros e revistas além de emissoras de rádio. Semana passada, em congresso da Associação Brasileira de Direito Autoral, informaram que a Globo se nega a pagar o ECAD, ou seja, não respeita direitos autorais.

As conseqüências desse processo de concentração e transferência da propriedade dos meios pesam, primeira e diretamente sobre nós, autores, os produtores do que eles denominam conteúdo, mas que na realidade é obra autoral. E trazem graves conseqüências também e sobretudo sobre a cultura nacional.

Entre as conseqüências sobre os autores já são visíveis: a redução e precarização no mercado de trabalho e as constantes violações aos direitos autorais. Os novos proprietários atuam como se vivessem em terra sem lei. Com vistas a magnificar o lucro impõem-nos contratos abusivos, utilizam indevidamente nossas obras, vendem o produto autoral sem remunerar seu legítimo e único proprietário que é o autor.

No universo editorial a presença das megacorporações está tornando cada dia mais difícil a sobrevivência da pequena e média casa editora, aquela que acolhe o escritor que não produz Best Sellers e garante a diversidade. Às grandes empresas interessam as obras de venda e lucro fáceis e aquelas que dão mais lucro são as que já foram publicadas em seus países de origem. Profusão de lixo editorial traduzido invade nossas poucas livrarias.

A sensível área de livro escolar também vem sendo monopolizada por grandes empresas estrangeiras. O país está se alfabetizando. O mercado de livros tende a tornar-se altamente promissor. Qual a perspectiva para os autores nacionais? Qual o futuro da literatura brasileira quando às editoras interessa as obras de fácil vendagem, não importando a qualidade? Qual o futuro da obra de cunho social, da crítica a realidade, do pensamento alternativo ao pensamento único que querem nos impor?

Questões como essas levam a conclusão de que pesa grave ameaça ao patrimônio cultural da nação. É preciso abrir os olhos e reivindicar que o Estado assuma a defesa da soberania cultural.

Com relação à legislação brasileira, consideramos que o arcabouço jurídico legal é bom e pode melhorar com pequenos ajustes. Devemos os autores estar alertas para não admitir qualquer alteração à legislação que venha a prejudicar os autores. Entendemos que o problema reside na desobediência à lei, não na Lei. O Estado tem que ser mais rigoroso na exigência da obediência à Lei.

No que concerne a Lei 9.610/98, especificamente, entendemos que com duas mínimas alterações atenderia melhor os anseios dos jornalistas e também dos escritores que represento como membro da diretoria do sindicato dos escritores do estado de São Paulo.

Primeira sugestão: no Artigo 7 alínea I – onde diz: os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; deve-se ler: os textos de obras literárias, artísticas, jornalísticas ou científicas.

Outra modificação reivindicada pelos jornalistas refere-se ao Artigo 36.
Art 36. O direito de utilização econômica dos escritos publicados pela imprensa, diária ou periódica, com exceção dos assinados ou que apresentem sinal de reserva, pertence ao editor, salvo convenção em contrário.

Parágrafo único. A autorização para utilização econômica de artigos assinados, para publicação em diários e periódicos, não produz efeito além do prazo da periodicidade acrescido de vinte dias, a contar de sua publicação, findo o qual recobra o autor o seu direito.

Entendemos que esse palavreado leva à confusão. Em vista disso sugerimos sua exclusão e substituição por um texto mais objetivo, algo tão simples como:
Art. 36. O direito de utilização econômica dos escritos pela imprensa, diária ou periódica, pertence ao autor, salvo convenção em contrário.

O Dr. Jaury Nepomuceno, advogado no Rio de Janeiro, argumenta que “o direito de utilização econômica dos escritos é um direito patrimonial do autor assim definido nos Arts. 22, 29, 31 da LDA e na CF, art. 5º, XXVII, que fala em direito exclusivo do autor. Tanto na doutrina quanto nas Convenções Internacionais sobre Propriedade Intelectual é inquestionável que o autor, somente mediante a transmissão formal do seu direito de utilização econômica da obra, transmite para terceiros esse direito. Assume a lei espírito contratualista, mediante a ressalva do salvo convenção em contrário”.

Não obstante, o que ocorre na realidade, é que os jornalistas, tal como os demais criadores no universo da comunicação, têm sido vítimas da imposição pelo mercado de contratos abusivos.

A Dra. Silvia Neli, advogada em São Paulo, que nos acompanha desde a formatação do estatuto e regimento interno da Apijor e coordena nosso departamento jurídico, tem sustentado que: muitas vezes esses contratos são vinculados ao contrato de trabalho sem qualquer remuneração compensatória por essa cessão.

Esses contratos são abusivos porque ferem os princípios do Direito Autoral expressos na Constituição Federal, na Lei 9610/98 e no novo Código Civil, tais como: o princípio do equilíbrio contratual, o da boa fé e o da finalidade social do contrato.

Diante dessa situação a Apijor repudia esses contratos abusivos e, para evita-los, tem recomendado o uso de Licença de Direito Autoral, por entender que esse instrumento protege melhor o autor.

Mesmo assim persistem as dificuldades pois não há equilíbrio na negociação. Há até mesmo assédio e chantagem.

Paulo Cannabrava Filho
Rio de Janeiro, 27 de outubro de 2008.