Projetos independentes, plataformas digitais e ações em rede redefinem o jornalismo no Nordeste

Por Mariama Correia 

Na segunda região mais populosa do país (mais de 27% da população brasileira, segundo o IBGE), o jornalismo resiste e se multiplica com a força das rádios e das ferramentas digitais, assumindo novos contornos para se aproximar do seu público. O Nordeste é responsável por 1.722 dos veículos jornalísticos mapeados nesta terceira edição do Atlas da Notícia. Isso representa 15% do total do levantamento.

O mapeamento da região apresentou resultados mais robustos nesta edição da pesquisa. No ano passado, 109 novos veículos foram somados à base de dados Nordeste do Atlas da Notícia. Neste ano, foram 195 novos registros. Com isso, o total de veículos mapeados nos nove estados nordestinos chegou a 922 rádios, 395 veículos online, 202 impressos e 203 televisões.

É importante observar que esse crescimento não significa necessariamente que novos veículos foram criados, mas que aumentamos a capilaridade do levantamento. Isso quer dizer que, a cada edição da pesquisa, conseguimos ter um olhar mais amplo sobre o jornalismo local.

Com maior número de habitantes da região, a Bahia foi o estado onde encontramos mais veículos jornalísticos: 458 no total, sendo 246 rádios, 110 online, 71 impressos e 31 TVs. Também foi o estado com o maior número de veículos por habitantes (4,41 a cada 100 mil). A presença marcante das rádios e dos veículos digitais observada no território baiano, assim como nos dados gerais do Nordeste, aponta para a reconfiguração do mercado de notícias locais.

Partes desses movimentos já foram observados desde a edição anterior do Atlas. A crise dos impressos e os desafios financeiros enfrentados pelas grandes empresas estão provocando mudanças agudas no mercado de comunicação. Alguns dos desafios impostos por essa nova realidade fizeram de 2019 um ano especialmente desafiador para o jornalismo no Nordeste.

Os desertos de notícias

Região historicamente invisibilizada pela mídia de abrangência nacional, centralizada na região Sudeste, o Nordeste ainda produz um jornalismo concentrado nas capitais. Em termos de volume de veículos jornalísticos registrados nas cidades da região, Fortaleza (CE) ficou em primeiro lugar, com 72 veículos, seguida por Salvador (BA), Recife (PE), Maceió (AL), São Luís (MA), Teresina (PI), João Pessoa (PB), Natal (RN) e Aracaju (SE).

Essa distribuição desnivelada da cobertura jornalística amplia os vazios de notícias. Nesta edição da pesquisa, 1.318 dos 1.794 municípios nordestinos foram classificados como desertos de notícias, ou seja, lugares que não contam com meios de jornalismo local. O dado é alarmante. Significa dizer que em 73,5% dos municípios da região não há cobertura jornalística da vida cívica.

A proporção aumentou em relação ao levantamento passado, quando 64% dos municípios nordestinos foram apontados como desertos noticiosos. Uma explicação possível está no próprio refinamento dos dados do Atlas, com mais veículos identificados como não-jornalísticos este ano, segundo os critérios estabelecidos pelo mapeamento. A maior desertificação, entretanto, também tem relação com o enfraquecimento da cobertura regional, como veremos.

Considerando a quantidade de municípios, o estado com maior proporção de desertos de notícias é Sergipe (85,6%), seguido pelo Rio Grande do Norte (83%) e pelo Piauí (81,6%).
Os desertos de notícias não estão apenas nos recantos mais longínquos. Muitos municípios das regiões metropolitanas das capitais são desertos de notícias. É o caso de Nossa Senhora do Socorro (SE), Camaragibe (PE) e Maranguape (CE). Mais próximas dos grandes centros urbanos, essas localidades são impactadas pela zona de influência dos veículos tradicionais consolidados, embora, na maioria das vezes, não recebam uma cobertura sistemática por parte desses veículos.

Internet abre caminho para novos modelos de negócio

Alguns casos emblemáticos ajudam a entender os desafios do jornalismo no Nordeste e como o mercado está se reconfigurando. Maior jornal diário do estado, o quase centenário Gazeta de Alagoas, que pertence à família do senador Fernando Collor de Mello (Pros-AL), já havia anunciado o fim de sua edição diária no ano passado. A mudança resultou na demissão de trinta dos 45 profissionais da redação e deixou uma lacuna na cobertura local.

Este ano, o periódico retomou edições diárias na internet apostando em novos formatos. As notícias podem ser acessadas pelo aplicativo do jornal, inclusive em versão de áudio. O app também inclui podcasts e vídeos. A versão impressa ficou restrita a uma edição semanal, que circula nos fins de semana e também é disponibilizada em versão flip no portal.

As plataformas digitais abrem caminhos para os negócios das grandes empresas de mídia, mas também para projetos independentes. Em dificuldades financeiras, este ano, as três maiores empresas de comunicação de Alagoas – Pajuçara Sistema de Comunicação (TV Pajuçara), Organização Arnon de Mello (TV Gazeta, TV Mar, G1 Al e Gazetaweb) e Sistema Opinião de Comunicação (TV Ponta Verde e Portal OP9) – propuseram a redução do piso salarial dos jornalistas.

Os profissionais iniciaram uma greve geral que ganhou repercussão nacional, com a hashtag #LuteComoUmJornalista chegando ao primeiro lugar dos trending topics do Twitter no Brasil. A crise reverberou na produção de notícias. Dois dos principais programas jornalísticos da TV Pajuçara não foram ao ar por falta de conteúdo e mão de obra na noite de 25 de julho, dia da deflagração do movimento.

Depois de nove dias de paralisação, a Justiça decidiu vetar a redução salarial e conceder reajuste de 3% para os jornalistas. Mas as retaliações vieram nos meses seguintes, com a demissão de vários profissionais que aderiram à greve. Depois disso, alguns dos jornalistas demitidos se uniram para criar novos veículos independentes, aproveitando a liberdade das plataformas digitais. Alguns exemplos são o canal de notícias no YouTube Acta, do Mídia Caeté e da TV Liberdade.

De fato, projetos de jornalismo independente em plataformas digitais têm proliferado no Nordeste. Entre as novas iniciativas, o coletivo independente de mídia Retruco (PE) entrou no ar este ano, reforçando esse novo ecossistema midiático. São exemplos de iniciativas já existentes na região a Agência Tatu de Jornalismo de Dados (AL), a Marco Zero Conteúdo (PE) e a agência Saiba Mais (RN). Interessante também observar a aposta no jornalismo comunitário feita por veículos como a Central Popular de Comunicação, no sertão pernambucano, que é digital, e a Agência de Notícia das Favelas, fundada no Rio de Janeiro, que iniciou edições impressas este ano em Salvador (BA) e no Recife (PE).

Colaboração como alternativa

A colaboração pode ser uma saída para a sustentabilidade dos jornais nordestinos. Exemplo disso é a Rede Nordeste, formada pelos periódicos O Povo (Fortaleza-CE), Jornal do Commercio (Recife -PE) e Correio (Salvador -Bahia), que completou um ano em maio de 2019. O principal objetivo da iniciativa de colaboração é a troca de conteúdo para dar amplitude à cobertura regional. Esse tipo de interação também surge como alternativa para reforçar a capacidade de produção e enfrentar a realidade de cortes nas redações.

A força do jornalismo de proximidade

No Maranhão, a TV Mirante, afiliada da TV Globo e pertencente à família Sarney, fechou escritórios no interior do estado nos últimos três anos, restringindo sua produção regional. O recuo de veículos consolidados das coberturas regionais, visto no fechamento de sucursais nos municípios mais afastados das capitais e no enxugamento das equipes, tem aprofundado os desertos noticiosos em todo o Nordeste.

Nos municípios do interior, as lacunas deixadas pela grande mídia estão sendo preenchidas pelas rádios e pelos blogs. A cobertura produzida por esses veículos é mais próxima da realidade da população, com destaque para assuntos por vezes desprezados pelos critérios de noticiabilidade das redações nos grandes centros urbanos. Não por acaso, as rádios e os blogs locais se tornam, muitas vezes, as principais fontes de informação em regiões desassistidas pela mídia tradicional.

O noticiário policial e o político são predominantes. A pesquisa do Atlas da Notícia observou que muitos dos blogs noticiosos do Nordeste são mantidos apenas por uma pessoa, com forte tendência à personificação dos projetos. Foram mapeadas 27 iniciativas individuais em plataformas digitais no Nordeste, do total de 395 veículos online. Nem sempre foi possível identificar se o autor do blog tinha formação como jornalista. Um ponto que vale observar é a baixa participação das mulheres nesses veículos, massivamente comandados por homens.

Redes sociais como o Facebook, além de grupos e listas de transmissão no WhatsApp, são as ferramentas digitais mais utilizadas para a propagação de noticias pelos blogs mapeados. O WhatsApp é uma via de mão dupla, porque também é usado como um canal direto entre o produtor de conteúdo e os leitores, incentivados a fazer denúncias pelo aplicativo de troca de mensagens.

Em termos de conteúdo, a influência de políticos é marcante. Essa característica fica evidente na recorrência com a qual certos deputados, vereadores e outros políticos de influência na região dos blogs aparecem nas publicações. Também é comum encontrar repasses de gabinetes de políticos para esses veículos, como pagamentos para divulgação de conteúdos. Há casos em que a plataforma de comunicação também pode servir de trampolim para que o próprio blogueiro se lance em uma carreira na política institucional. Exemplo disso foi o anúncio da pré-candidatura a vereador de Romero Moraes, dono do blog Mais Pajeú, que também tem uma web TV e uma web rádio.

O desafio de mapear o Nordeste

O mapeamento do Atlas da Notícia é feito com a participação de voluntários nos estados brasileiros. No Nordeste, a pesquisa contou com a participação de estudantes das universidades federais de Pernambuco, Piauí e Bahia, além da Universidade Estadual da Paraíba, das Faculdades Integradas Barros Melo (Pernambuco), da Universidade Católica de Pernambuco e de profissionais voluntários.

Como nem todos os estados mobilizaram equipes de pesquisa, para cobrir toda a região foi preciso distribuir o território entre os participantes. Além desse desfalque, as dificuldades no acesso a informações básicas sobre os veículos, sobretudo os blogs noticiosos, também foram entraves para a pesquisa no Nordeste. Poucos projetos se preocupam com a transparência de informações, como a propriedade do veículo e o número de colaboradores. Em alguns casos, é difícil conseguir até os dados para contato.

Contudo, diante da velocidade com a qual os veículos digitais estão proliferando e de todos os movimentos que reconfiguram os negócios de comunicação, sabemos que a relevância da cobertura local está em ascensão na região. Os desafios que enfrentamos no mapeamento dessas iniciativas apenas nos mostram que ainda temos muito espaço para avançar na compreensão do jornalismo feito no Nordeste.

Colaboradores

O Atlas da Notícia é um projeto de pesquisa colaborativo que contou com a participação das seguintes pessoas no Nordeste:

-Ana Júlia Moreira dos Anjos Almeida
-Anderson Luis Bispo Dos Santos
-Andressa Franco dos Santos Lima
-Camila Xavier de Barros e Souza
-Débora Natacha Guedes de Oliveira
-Everton Ruan Amorim da Silva
-Géssika Aline Lima da Costa
-Gláucia Campos Santana
-Isadora Sarno de Lima
-Ivanise Hilbig de Andrade
-Jaciela Nayara Cordeiro de Arruda
-João Claudio de Santana Guerra
-João Vítor Pinto Delfino Sena
-Jordana Fonseca Barros
-Leonardo Almeida Rangel
-Luan Ribeiro Pugliesi Lessa
-Lucas Eduardo Vilas Boas Bulhosa Reis Santos
-Maria Eduarda de Santana Gomes
-Raianne de Almeida Romão
-Rakeche Rayza Santos Nascimento
-Sara Cristina Simas Couto

E com o apoio das seguintes instituições:

-Faculdades Integradas Barros Melo
-Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)
-Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
-Universidade Federal da Bahia (UFBA)
-Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
-Universidade Federal do Piauí (UFPI)

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Mariama Correia é jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Repórter do coletivo de jornalismo investigativo e independente Marco Zero Conteúdo, com passagem pela editoria de Economia do jornal Folha de Pernambuco. Já assinou matérias no The Intercept Brasil, em publicações da Editora Abril e no Jornal do Commercio. Contribuiu com o projeto de fact-checking “Truco nos Estados”, da Agência Pública, durante as eleições de 2018. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais na Kings (UK).


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