Marcada por invisibilidade, história dos negros do Ceará é recontada na academia

Defesa do lugar de fala, empoderamento feminino negro e representação das populações periféricas foram os pressupostos que guiaram o segundo encontro do Curso Abdias Nascimento – Comunicação e Igualdade Racial, realizado na noite da terça-feira, 28 de agosto. Levando em consideração este espírito, foram convidadas para a vivência, com o tema “Existem negros no Ceará?”, as pedagogas Samia Paula dos Santos Silva, doutoranda e mestra em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), e Emanuela Ferreira Matias, mestranda em Educação também pela UFC.

Samia Paula é filha da comunidade quilombola de Bastiões, no município de Iracema, no Vale do Jaguaribe. Já Emanuela Ferreira nasceu e cresceu no Conjunto Palmeiras, bairro periférico da Capital marcadamente negro e que se destaca pela organização popular. As duas falaram como protagonista das próprias lutas e movimentos. “Com o tempo, a gente vai assumindo a nossa identidade negra porque o mundo vai nos dizendo que a gente é preta quando uma pessoa muda de calçada ao nos ver ou quando a PM nos chama de vagabunda, mesmo a gente tendo mestrado”, afirmou Samia.

Reafirmação da negritude

A aula contou com a apresentação da origem histórica da população negra no Estado, invisibilizada até hoje entre as fontes oficiais de História, sobretudo nos ensinos Básico e Fundamental, mas que já encontra, na academia, negros e negras dispostos a contá-la. “Precisamos recontar nossas histórias e dizer, sim, existem negras e negros no Ceará! Nós estamos nos Bastiões, no Conjunto Palmeiras, nas universidades “, disse Emanuela.

Emanuela lembrou que a presença negra africana no Estado remonta de 1856, com pessoas escravizadas que vieram de Angola e do Congo para trabalhar na pecuária e agricultura. Essa presença se inicia pelo Sul do Ceará, precisamente no Cariri. “Antes dos africanos, os indígenas aldeados eram utilizados como escravos. Com o fim do tráfico intercontinental de negros, o Ceará passa a exportar escravizados para outras províncias. Os negros eram trazidos do interior para a Praia dos Peixes, hoje Praia de Iracema”, reforçou.

Em 1881, o jangadeiro Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, organizou a greve dos jangadeiros, em oposição ao tráfico interprovincial de negros. Nesse mesmo período, há outro negro invisibilizado pela história oficial, o escravo alforriado José Napoleão. “Houve, durante muito tempo, uma romantização da situação dos negros no Ceará colonial. Diziam que eram bem tratados, que eram escravos domésticos. Mas os relatos dos jornais mostravam que havia muitas fugas e revoltas”, comentou a coordenadora do curso, a professora doutora Sílvia Maria Vieira.

Auto reconhecimento e resistência dos quilombolas

Autora da dissertação “A juventude remanescente de Quilombo da Comunidade Bastiões (CE): tensões e identidade”, Sâmia Paula apresentou sua comunidade, a Serra dos Bastiões, fundada por duas mulheres negras fugidas da Bahia, Maria Feliciana e Bribiana. O termo Bastiões vem de Sebastião, ou dos muitos Sebastiões que carregaram este sobrenome.

Lá na comunidade, o processo de reconhecimento como terra remanescente de quilombo tem enfrentando tensões com a população não negra, sobretudo proprietários de terrenos ocupados a partir de 1970, após a morte de uma das principais lideranças, o senhor Raimundo Assis. “Somos uma comunidade em conflito”, resumiu.

“Com toda essa luta pela demarcação, a gente aprende que o território é também espaço de emoção. Não é uma pessoa de um órgão do governo que vai chegar na comunidade, fazer umas perguntas e dizer: pronto, vocês são quilombolas! É necessária a compreensão da história, do processo, a auto atribuição e o auto reconhecimento”, disse a professora, em tom de desabafo.

Formação vivencial-teórica

Com metodologia de ensino-aprendizagem, baseada nos preceitos da educação popular, a aula teve a participação expressiva dos cursistas, com intervenções sobre suas percepções e descobertas da própria negritude, alcançando o objetivo de levar a turma à compreensão como a narrativa, seja a histórica ou a comunicacional, é um campo de disputa de memória. Além disso, as falas contribuíram para o debate sobre a afirmação dos sujeitos negros, sobretudo mulheres e pessoas das periferias.

“Aos poucos, o curso também vai nos permitir a enxergar nossas formas de aprender, como falava Paulo Freire”, explica Rafael Mesquita, secretário-geral do Sindjorce e um dos coordenadores da iniciativa. Para ele, o fato de ser uma formação de uma entidade classista, chama a responsabilidade para que o seu formato não seja meramente reprodutório, como acontece nas organizações de ensino tradicionais. “Por isso fazemos a opção por uma lógica vivencial-teórica e não meramente acadêmica”, diz.

Silvia Maria destacou ainda que a recepção de duas pessoas que venceram o racismo institucional e chegaram à pós-graduação foi muito simbólica e, ao mesmo tempo, teve o papel de mostrar que precisamos romper, de uma vez por todas, com o que ela chamou de “silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate público”, para então “aprendermos a valorizar o que é nosso, o que negamos e matamos em séculos de opressão”, finaliza.

Texto: Samira de Castro e Rafael Mesquita

Fotos: Sindjorce


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