Carta para o Jornalismo do Futuro!

Caros e caras companheiros e companheiras jornalistas,

Dirijo-me a vocês, antes de tudo, para saudar os esforços que fazem em defesa do jornalismo e da profissão de jornalista. Mas também gostaria de dedicar algumas nada breves (adianto) palavras sobre os desafios coletivos que vamos enfrentar em 2023. 

Começamos a nossa conversa pelo processo eleitoral de 2022, que foi polarizado entre a democracia e o autoritarismo, e terminou com a vitória das forças democráticas. Essa definição é importante para toda a sociedade brasileira e, em nosso caso particular, trabalhadores jornalistas, determinante para construirmos algum patamar de esperança.

Mas esse triunfo não encerra as disputas travadas pelas forças democráticas e populares. Agora, precisamos colocar em prática o projeto de reconstrução do país, que passa pelo enfrentamento das políticas de desmonte de direitos trabalhistas e sociais realizadas nos últimos anos.

2023 também será o ano da reconstrução do jornalismo brasileiro. O jornalismo do futuro, que começa a ser edificado no presente, tem o desafio de se reerguer, enfrentando a crise do modelo de negócio do jornalismo tradicional, combatendo a descredibilização e a violência que nos atinge severamente e criando instrumentos de financiamento e fortalecimento dos modais independentes. Também não podemos mais nos omitir frente aos marcadores sociais – de gênero, raça, classe, sexualidade, entre outros – que interagem entre si, influenciando a forma como experimentamos a vida em sociedade. Falamos de um futuro de jornalismo de qualidade, ético, solidário, respeitador dos direitos laborais e das liberdades fundamentais.

O grande desafio de curto prazo para o jornalismo também é corrigir os caminhos tortuosos que nos levaram até aqui. Não podemos esquecer que parte do caos brasileiro do último período pode ser responsabilizado aos conglomerados econômicos que controlam os maiores veículos jornalísticos do país. Temos que denunciar os discursos ideológicos dos donos da mídia, que usam as prerrogativas da “cultura jornalística” como escudo para as suas narrativas, e dizer que o jornalismo comercial e hegemônico embarcou de cabeça em um projeto político, usando como método a ausência de senso crítico e de apuração real. Para a própria existência do jornalismo, precisamos alforria-lo das amarras do jornalismo como negócio, execrando o que há de mais podre nele: o comercialismo – predatório e descontrolado.

Isso me faz lembrar outra ação determinante: consertar a desmoralização exige que imaginemos um sistema de mídia que não seja tão centrado nos fins lucrativos. É onde entra a proposta do Fundo Nacional de Apoio e Fomento ao Jornalismo (Funajor). A sugestão parte do entendimento de que as sociedades democráticas precisam debater e implementar medidas para garantir o financiamento da produção jornalística. Para compor o Fundo, a ideia do movimento sindical dos jornalistas é que sejam taxadas as grandes plataformas digitais. Precisamos, urgentemente, desse tipo de inovação, porque qualquer chance que tenhamos de construir e sustentar uma sociedade democrática mais igualitária passa pela adoção de medidas, no âmbito político, que possam proteger os meios de produção e de suporte do Jornalismo.

Tendo a acreditar que o jornalismo do futuro já foi gestado. Afinal, estamos no final de um ciclo evolutivo de consolidação e mercantilização do jornalismo, quando os dias de quase monopólio pré-Internet, onde jornais e duas a quatro emissoras de TV controlavam o fluxo de informações, estão perto do fim. Há indícios de que estamos prontos para o desenvolvimento de novas e inspiradas formas de experimentação.  A vanguarda deste outro jornalismo já trabalha nas redações independentes locais e em organizações diversas, como os produtores livres que se organizam pelas bandas do Nordeste. Ideias e novos valores também são debatidos em programas de graduação e pós-graduação que pretendem ampliar a representação de quem e como as histórias são contadas. Neste cenário, cabe a nós incentivar e integrar essas experimentações, desafiar os padrões normativos do jornalismo e afirmar seu papel incalculavelmente importante na descoberta de novas formas de expressar a experiência humana.

Outra ação demandada é a reconstrução da comunicação pública, com instrumentos de autonomia em relação ao governo e ao mercado. Como política de Estado, previsto na Constituição, o modelo público não pode se misturar com a comunicação governamental. Neste espaço, o jornalismo pode ser um ator protagonista, com o ingresso de profissionais de carreira, que chegam ao setor através de concurso público. Este periodismo carrega as condições de, sem amarras, refletir a diversidade, as capacidades e a regionalidade brasileira, não apenas na representação que produz, mas em toda sua estrutura. O jornalismo público, portanto, carrega as condições de realizar o dever ético e o imperativo social que organizam a profissão.

Mas “futuro” aqui também é paradoxo. Para usar uma frase, podemos dizer que estamos “de volta ao futuro”. Explico melhor: ao invés do macro, de suportes de jornalismo de grande escala baseados em lugares distantes, com pouca conexão com comunidades periféricas, “voltamos” ao micro, com o foco em veículos de notícias independentes, que tem aumentado consideravelmente – embora a sustentabilidade destes arranjos seja o grande desafio, como nos advertem as pesquisas do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT), da Universidade de São Paulo (USP).

O “futuro do jornalismo” também passa pela escuta. Essa oitiva pode nos dar a dimensão sobre o que as pessoas querem ver menos, como conteúdo de opinião, e ver mais, as histórias que não estavam sendo abordadas. Jornalistas precisam cada vez mais realizar o esforço de ouvir o público ou enxergar os anseios deste público, para fornecer o jornalismo que a sociedade precisa. Talvez esta seja uma das senhas para acessar estas novas audiências definidas/gestadas no século XXI. Nos caberá também, como adverte Carlos Castilho, “desenvolver a habilidade e as competências necessárias para lidar com a complexidade das comunidades sociais, ou seja, ver o conjunto das pessoas e cada indivíduo como partes diferentes mas integradas”. 

Em 2023, o jornalismo não pode mais se furtar às evidências sociais de nossa realidade. Além de deixar de se referenciar pelo lado errado (do mercado, do establishment etc), jornalistas precisam compreender e ativar a consciência e as práticas profissionais para os severos instrumentos de subalternização que nos perseguem há séculos, impostos a multidões sociais, que são marginalizadas e excluídas como norma. Ao mesmo tempo, todos aqueles e aquelas que sofrem o peso do secular arbítrio – mulheres, pessoas racializadas, indígenas, pessoas com deficiência e integrantes da comunidade LGBTQIA+ – não podem mais se restringir ao papel de meros observantes e nem podem ser deixados de lado. É direito deles, delas e delus a inserção social e produtiva no jornalismo, das universidades aos postos de trabalho, para que possam ter participação ativa e ações concretas neste novo caminhar.

Outra demanda relevante para a nossa prática passa por romper com o dito jornalismo declaratório, que alimenta os opressores e os sistemas de opressão, e dar aos fatos os nomes que eles têm, afinal, debates sobre direitos das pessoas LGBTQIA+ não são meras “questões comportamentais” e discurso de ódio não é “polêmica”. 

O doisladismo é outra doença que precisamos erradicar, pois está longe de um projeto de imparcialidade e objetividade. O ingrediente, que falta a este angu, é o reconhecimento de que o posicionamento jornalístico é (ou deveria ser), por natureza, complexo, ou seja, deve se dar a partir do cruzamento e da sobreposição dos sistemas, inclusive os de opressões instalados nesta dada realidade.

No centro deste debate está ainda o enfrentamento dos mecanismos de difusão de desinformação e fake news, que podem ser combatidos nos níveis social e profissional. Jornalistas podem cada vez mais ser parte de programas de Educação em Comunicação, que devem ser políticas de Estado, assim como é necessário o desenvolvimento de campanhas permanentes para defender o Jornalismo e os (as) jornalistas e para combater a desinformação. Para tanto, é preciso reconhecer que a desinformação se desenvolve em um cenário que o jornalismo se afasta de seus públicos, a exemplo dos muros do paywall, e de uma produção que é pautada pelo imediatismo, que se acentuou com a digitalização da mídia, sobrando muito menos tempo para que os jornalistas avaliem as circunstâncias em que os acontecimentos se desenrolam, muitas vezes restando-lhes a superficialidade.

No quadro organizativo, jornalistas, mesmo fora dos modelos tradicionais de trabalho do setor, precisam reconhecer a importância dos sindicatos da categoria na defesa dos direitos e da democracia na história recente do Brasil. A profissão foi severamente atacada, de todos os lados, desde a brutalidade dirigida aos trabalhadores em seu ofício até as tentativas, de Temer a Bolsonaro, de destruir as nossas prerrogativas legais. E como a pandemia de Covid-19 também mostrou, os operários da notícia só puderam contar com os seus sindicatos e com a sua Federação sindical, a Fenaj.

Portanto, o jornalismo do futuro não pode ser sem direitos, não pode ser sem sindicatos, não pode ser sem organização coletiva. E é mandatário que a entidade sindical dos jornalistas cada vez mais reflita a necessidade de organizar setores hoje desorganizados, como trabalhadores informais, jovens, mulheres, pessoas LGBTQIA+ e pessoas racializadas, grupos sociais que mais sofrem com o desemprego, a precarização e a informalidade crescentes. Um sindicalismo que seja capaz de defender não apenas direitos específicos da categoria, mas direitos trabalhistas e sociais universais.

Juntos, nas pautas e nas lutas, jornalistas devem se incorporar ao debate social pela redefinição dos direitos dos trabalhadores brasileiros. Uma nova legislação trabalhista é determinante, tendo em vista que as “reformas” neoliberais no setor reduziram a capacidade de intervenção sindical e criaram instrumentos que fragilizaram ainda mais as relações de trabalho, como a redução do alcance dos acordos e convenções coletivas.

Com força coletiva, poderemos lutar por demandas históricas dos jornalistas, como a Proposta de Emenda à Constituição Federal que restabelece a obrigatoriedade da formação de nível superior específica para o exercício da profissão, a atualização da regulamentação profissional da categoria, a Criação do Conselho Federal de Jornalistas (CFJ), a instituição de um piso salarial nacional para a categoria dos jornalistas e a regulação das Comunicações e das plataformas digitais.

Aos jornalismos (também o hegemônico) e aos jornalistas, que no oficio ou na militância sindical se colocam de pé para ratificar que sem jornalismo não há democracia, é preciso lembrar que o futuro é de trabalho. De posse dos nossos valores profissionais, sobretudo com a responsabilidade social inerente à profissão, precisamos perseguir o jornalismo como bem público.

Que a força esteja conosco!

 

Rafael Mesquita

Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Ceará (Sindjorce)


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