“A presença negra no Ceará é marcada e marcante”, resumiu a professora doutora Sílvia Maria Vieira dos Santos. Não obstante a historiografia oficial ainda teime em negar a existência de negros escravizados em território cearense no período colonial – o que influencia diretamente no reconhecimento das raízes afrodescendentes e no sentimento de pertencimento de boa parte dessa população – a militância organizada e a maior participação de pessoas pretas no ensino superior proporcionam, atualmente, novos estudos sobre a presença negra no Estado.
A existência de negros no Ceará e a história dos movimentos negros estaduais foram problematizadas no segundo encontro do Curso Dandara dos Palmares – Gênero, Raça e Etnia na Comunicação, realizado no dia 3 de outubro, no auditório do Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce). Além de Sílvia Maria, a aula contou com a participação da também professora mestra Joelma Gentil, que integra a Coordenação de Políticas educacionais do Movimento Negro Unificado no Ceará (MNU).
A atividade também teve a participação do escritor Hilário Ferreira, cuja obra “Catirina, minha nêga, tão querendo te vendê…: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881)”, foi a principal fonte bibliográfica utilizada na exposição de Sílvia Maria, que é coordenadora pedagógica do Curso Dandara dos Palmares. “Da mesma forma que escamoteia a presença de negras e negros no Ceará, a historiografia vai dizer que não existiam indígenas também”, reforçou a professora.
Porém, citando autores como Simone de Souza, Ismael Pordeus e o próprio Hilário Ferreira, a coordenadora pedagógica fez um breve relato de fontes de leitura que contradizem a afirmação de que não houve presença negra no Estado. “Os escravizados africanos foram introduzidos no Ceará por volta de 1756, sendo de origem Congo-Angolanas (Banto): Angola, Cabinda, Benguela. Nos censos da população do Ceará para os anos de 1804, 1808 e 1813, a soma dos pardos, mulatos livres, pretos e pardos cativos, pretos livres é superior a da população branca livre”, comentou Sílvia Maria.
Com o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, o escravizado trabalhava ao lado da população livre. “Os negros estavam presentes em toda as atividades da Província não só como cativos, mas como trabalhadores livres e proprietários. Os livros mencionam famílias como Teles, Domingos Lopes e João Coelho como pretos forros que lutaram contra a invasão holandesa, mas que tiveram sua origem africana invisibilizada propositalmente porque não era interessante que outros negros nas outras províncias soubessem que aqui seus irmãos eram proprietários de terras”, acrescentou a professora.
Negritude é construção política
Ser negra e negro é uma construção política que passa pelo sentimento de pertencimento a um grupo racial ou étnico, decorrente de construção social, cultural e política. Partindo dessa premissa, Sílvia Maria colocou que muitas pessoas não se identificam imediatamente como negras porque “negro é tudo de ruim que está no dicionário”. Por outro lado, ao se autodeclararem pardas, elas também não se reconhecem como brancas. “O pardo é o não lugar”, frisou. Acrescentou que a pessoa se reconhece como negra e a comunidade também a reconhece como tal.
Para Hilário Ferreira, a negritude é uma construção política, assim como a produção de conhecimento que, por anos, sempre foi privilégio de uma elite branca com acesso ao ensino formal e superior. “Ainda temos uma universidade eurocêntrica, onde a produção de conhecimento está ligada ao poder. É preciso que o nosso povo chegue às universidades e produza conhecimento a partir do olhar dos de baixo”, avaliou. “O passado serve para que a gente aprenda e ocupe os espaços nas universidades”, frisou.
Sílvia Maria lembrou uma pesquisa de Joselina Silva sobre a quantidade de mulheres negras doutoras nas universidades brasileiras, que não chegava a 50. “Além de faltar acesso, faltam políticas de permanência”, disse, recordando os recentes cortes nas verbas de ensino e pesquisa pelo MEC, atingindo universidades como a Unilab, cuja proposta é a integração afro-brasileira nos saberes e a construção de um pensamento deloconizado.
Mulheres militantes à frente dos movimentos
Sobre a atuação dos movimentos negros no Ceará, a professora mestra Joelma Gentil falou a partir das memórias organizativas e falas militantes reunidas em seu trabalho acadêmico. De saída, destacou: “avançamos muito, enquanto movimento negro no Ceará”. Sua dissertação avalia as organizações das décadas de 1970 até o início dos anos 2000. “Os movimentos sempre estiveram à frente das leis”, destacou.
Traçando uma linha cronológica da organização dos movimentos no Estado, Joelma Gentil resgatou os passos do Grupo de União e Consciência Negra (Grucon), o Grupo Filhos d’África, os Agentes de Pastoral Negros (APN’s) e o Movimento Negro do PDT. A integrante do MNU frisou, ainda, que é impossível discutir o movimento negro no Brasil sem destacar a importância das mulheres, “sempre à frente da organização dos grupos”, como também evidenciou Sueli Carneiro, ao dizer que as mulheres levam diferença qualitativa na organização do povo preto.
Texto: Samira de Castro
Fotos: Claudiane Lopes