Tratamento dado à população negra evidencia reedição da escravidão, diz Zelma Madeira

Uma sociedade ensinada e acostumada a ver o povo preto como inferior, não compreende o racismo como estruturante e estruturador das relações sociais no Brasil. Com farto número de estatísticas que mostram negras e negros como a população mais atingida pela violência, pelo desemprego e pela falta de representatividade, o Estado brasileiro ainda avança lentamente na implantação de políticas públicas para a promoção da igualdade racial.

“Desigualdades raciais e políticas públicas afirmativas” foi o tema do 6º encontro do Curso Abdias Nascimento – Comunicação e Igualdade Racial, realizado no dia 25 de setembro, no auditório do Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce). A aula foi ministrada pela professora doutora Zelma Madeira, titular da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado do Ceará.

Em que pese o fato de 53,6% da população brasileira se autodeclarar negra (pretos e pardos), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Zelma Madeira reforçou que falar sobre raça é quase um tabu no Brasil. “As posições sociais desiguais aparecem como fossem desígnio da natureza. Há uma negação do preconceito e ou reconhecimento dele como mais brando”, comentou.

Escravidão reeditada na atualidade

A professora destacou o caráter da escravidão mercantil moderna que vigorou no Brasil por  300 anos e de como seus reflexos são sentidos pelo povo afrodescendente até a atualidade. “O problema é a recriação da escravidão, a reedição. Não é só herança. Ela se reedita em cenário contemporâneo. Saímos da abolição com condutas criminalizadas: a vadiagem, a mendicância e a capoeiragem. Essas condutas vêm tomando novas formas. Quem é negro e quem é negra sabem o que eu tô dizendo: criminalizam a nossa estética, dizem que nós saímos da escravidão viciados a trabalhar na base do açoite. Não temos ética e nem moral para o trabalho. Duvide do trabalho feito por nós”, pontuou.

Zelma Madeira afirmou que se reedita como herança da escravidão as relações do trabalho doméstico, por exemplo. “Temos usufruído desse projeto de nação racista e anti-negro, este capitalismo que anda junto com o escravismo e o racismo”. Prova disso é que, segundo a Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (PNAD/2017), das 13 milhões de pessoas desempregadas no Brasil, 8,3 milhões (63,7%) são negras. Quanto ao rendimento, o de trabalhadores/as negras foi de R $ 1.531,00 e dos brancos, R$ 2.757,00. Os dados revelam que o racismo inscreve-se nos índices de desigualdades em áreas estratégicas para processos de desenvolvimento social e econômico.

“Não posso resolver daqui para trás, mas posso pensar daqui para a frente… A gente precisa politizar a nossa história, porque é ela que nos constitui”, reforçou a titular da Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial. “Eu preciso politizar essa história para que eu possa estar e mudar essa realidade. Preciso, daqui pra frente, refazer e dizer dessa história com uma dimensão política. Quero colocar nessa história (as discussões sobre) relações de poder e lugar interesse, definição de lugar, posição. Não tem neutralidade. Se eu preciso explicar o Brasil hoje, ou explico pelo viés do escravista ou do escravizado”, frisou.

Concepções de racismo

Doutora em Sociologia, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Zelma Madeira falou sobre as concepções de racismo – individualista, institucional e estrutural. No caso da primeira, o racismo é tratado como uma espécie de “patologia” social; um fenômeno ético ou psicológico de caráter individual ou coletivo, atribuído a grupos isolados; ou ainda, uma “irracionalidade”, cuja providência mais adequada a ser tomada é no campo jurídico

Já na concepção de racismo institucional, este resulta do mau funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça. “Por serem as instituições lugares de produção de sujeitos é necessário que haja medidas de ‘correção’ dos mecanismos institucionais, como ações afirmativas que aumentem a representatividade de minorias raciais e que alterem a lógica interna dos processos decisórios”, argumentou a professora.

Por fim, na concepção estrutural, o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. Considera-se que comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. “Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo pensar sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”.

Ruptura põe em xeque a democracia

Zelma Madeira comentou ainda sobre as leis criadas pelo estadio brasileiro, desde a Abolição até a Velha República, que impediam as pessoas negras, por exemplo, de terem acesso à educação. Avançando na análise, destacou que “o Brasil parecia aberto ao século XXI, com um sistema politico democrático recente, novo mais fortalecido, porém alguma coisa deixou de funcionar entre 2015 e 2017, mudanças que colocaram dúvida a qualidade de nossa democracia”.

“Naquele momento, e hoje também , a República no Brasil falha na disposição de garantir direitos, em especial direitos civis, com manifestações de racismo, diversos gestos de homofobia, feminicídios, falta de politicas dirigidas às pessoas com deficiências de toda ordem, ataques aos povos indígenas e a seus direitos à terra, assim como aqueles destinados aos quilombolas”, disse a professora, citando a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.

Texto: Samira de Castro

Fotos: Sindjorce


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