“Nós, mulheres pretas, pobres e periféricas, ainda estamos no direito à vida”

“Para nós, o povo preto, o Estado chega através da bala e do camburão”, crava Franciane Santos, 30 anos, assistente social, mulher negra e quilombola que, mesmo com a pouca idade, tem muito a ensinar quando o assunto é opressão de gênero, raça e classe. Interseccionalidade é um conceito feminista que essa jovem moradora do bairro José Walter, na periferia de Fortaleza, conhece para além da teoria de pensadoras negras como Kimberlé Crenshaw, Angela Davis e Carla Akotirene.

“A gente que vive esse racismo e essa misoginia, não sabe se chega viva em casa”, pontua Franciane , olhando para o relógio e se preocupando com o fato de a aula terminar perto de 22 horas. Maranhense de nascimento, ela conta que se casou por conveniência, largando uma vida ao lado dos seus familiares no território quilombola Saco das Almas, leste do Maranhão, para “ser explorada no Ceará”. Dos 12 aos 20 anos, trabalhou como doméstica — “em casa que, ‘de família’, não tem nada”.

A mudança de vida chegou com o ingresso no curso superior de Serviço Social, na Capital cearense. A patroa disse que ela “não prestava mais para o serviço porque gostava de estudar”. “Ela me chamava de nega atrevida porque eu sempre tinha uma resposta pra dar”. Sem a perspectiva do emprego para se manter nos estudos, Franciane conta que casou com um amigo dos tempos de ensino médio.

Pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidade, Gênero e Família (Nuafro), da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e integrante do Instituto Negra do Ceará (Inegra), a assistente social foi convidada pelo Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce) e pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) para falar sobre “Mídia e Direitos da Mulher”, em uma das aulas do Curso Dandara dos Palmares — Gênero, Raça e Etnia na Comunicação, que as entidades promovem em Fortaleza, por meio de edital de financiamento da Casa Civil do Governo do Estado.

A aula, com o tema “Mídia e Direitos da Mulher”, realizada no dia 17 de outubro, tem outra convidada, a jornalista Cristiane Bonfim, que fala depois de Franciane, visivelmente impactada por suas palavras (assim como eu fiquei quando conheci a Fran, numa atividade do Fórum Cearense de Mulheres). “Do meu lugar de privilégios, descobri que ser mulher é viver uma luta diária. Tive uma filha, depois de dois filhos, e decidi estudar o feminismo no mestrado para construir um legado para minha filha. Mas eu reconheço que sou mulher branca e venho de uma classe média, um lugar privilegiado em relação à Franciane”.

12 direitos no papel

Falando sobre o tema proposto, a assistente social elencou 12 direitos que a Organização das Nações Unidas (ONU) caracteriza como sendo das mulheres, destacando que não são garantidos de forma igualitária entre brancas, negras e indígenas:

Direito à vida;
Direito à liberdade e a segurança pessoal;
Direito à igualdade e a estar livre de todas as formas de discriminação;
Direito à liberdade de pensamento;
Direito à informação e a educação;
Direito à privacidade;
Direito à saúde e a proteção desta;
Direito a construir relacionamento conjugal e a planejar sua família;
Direito à decidir ter ou não ter filhos e quando tê-los;
Direito aos benefícios do progresso científico;
Direito à liberdade de reunião e participação política;
Direito a não ser submetida a tortura e maltrato.

“Quando a gente analisa, descobre que esses 12 direitos nunca chegaram para a mulher preta. A gente ainda luta pelo direito de existir. Nós, mulheres pretas, pobres e periféricas ainda estamos no direito à vida”, afirma Franciane Santos

A fala da militante do Inegra vem acompanhada de estatísticas e questionamentos retóricos: a população preta e parda equivale a 54% dos brasileiros (IBGE), “por que a gente não está [mais presente] nas instâncias de poder? Em vez disso, somos 64% dos integrantes do sistema prisional”. A resposta, Franciane Santos sabe na ponta da língua: por conta do racismo estrutural, fundante da sociedade brasileira, e que se releva ainda mais perverso em tempos de governo neoliberal ultradireitista, cujas reformas ampliam o fosso entre pessoas negras e não negras, notadamente as mulheres pretas — as mais afetadas pelo desemprego, pela dificuldade de acesso à educação formal, ao Sistema Único de Saúde, ao Sistema de Justiça e a aposentadoria.

E a mídia com tudo isso?

O racismo estrutural perpassa todas as instâncias organizativas da sociedade. A mídia não tem sido diferente. Franciane Santos questiona quem são os propagadores de notícias e opiniões: majoritariamente homens e mulheres brancos. “Nós pretas e pretos protagonizamos os programas policiais — que só aqui no Estado são sete, sempre exibidos na hgora do almoço -, assim como somos vistos como objeto de estudo na academia”, vaticina. Citando dados do Projeto de Monitoramento Global da Mídia, realizado pela ONU em 144 países, revela que as mulheres correspondem à metade da população mundial, mas representam apenas 24% das pessoas que aparecem em rádios, jornais e TVs. De acordo com os números, essa situação não mudou nos últimos anos. A porcentagem foi a mesma de 2010.

O relatório destaca que a relativa invisibilidade das mulheres nos meios de comunicação tradicionais chegou à mídia social também. Somente 26% das pessoas envolvidas com notícias na internet ou no Twitter são mulheres. “O sexismo persiste e se perpetua há décadas nos espaços midiáticos”, comenta a assistente social. “Por isso, precisamos de um grande esforço, um exercício contínuo para enegrecer e feminizar a mídia e os saberes no Brasil”, reflete essa jovem inquieta e perguntadeira, como Franciane se define.


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